O montanhismo como esporte: mérito pessoal x mérito esportivo

Autor: Marcelo Delvaux

Guia profissional de montanha, com título de “Guía Superior de Montaña” obtido na EPGAMT. Guia de montanha associado à AAGM e à AAGPM e credenciado no Parque Provincial Aconcagua. Possui mais de 150 cumes de alta montanha em seu currículo, com 12 cumes no Aconcagua, a montanha mais alta das Américas.



No artigo anterior discutimos o contexto histórico do surgimento e desenvolvimento do montanhismo de exploração, desde o século XIX até as últimas três décadas, marcadas pela consolidação do modelo de montanhismo comercial que, atualmente, predomina em algumas montanhas do mundo. Também procuramos demonstrar a relação existente entre a ideia de “exploração” e a concepção do montanhismo como um esporte não competitivo, responsável pela construção, ao longo dos anos, de regras de conduta nos âmbitos ético e técnico para a validação da prática esportiva.

Se antes as grandes montanhas eram frequentadas, principalmente, pelos montanhistas de elite, com o aumento da oferta dos serviços de guias de montanha e com a organização de expedições comerciais por empresas especializadas, qualquer pessoa com um preparo físico adequado e que disponha dos meios financeiros para bancar os custos correspondentes, pode praticar atividades como trekking em lugares remotos ou ascensões em alta montanha. Nos dias de hoje, é possível identificar dois perfis básicos entre aqueles que se aventuram nas principais cordilheiras do mundo: montanhistas que encaram o ato de subir uma montanha como uma atividade esportiva e os adeptos que buscam uma atividade de lazer em um ambiente natural.



De um modo geral, poderíamos dividir os objetivos dos montanhistas em dois tipos: objetivos esportivos e objetivos pessoais. Os objetivos esportivos estão sujeitos às regras e à ética do montanhismo como um esporte, para que um mérito esportivo possa ser atribuído a uma determinada atividade. Já os objetivos pessoais estão relacionados a motivos individuais, muitas vezes somente compreendidos por quem se propõe um determinado desafio. Os objetivos esportivos, portanto, são realmente “objetivos”, no sentido de compartilharem uma certa objetividade imposta pelas regras do esporte que definem metas a serem cumpridas e limites a serem respeitados. Já os objetivos pessoais guardam um elevado grau de subjetividade, pois estão relacionados a visões de mundo, valores, concepções e princípios particulares e individualizados.

A realização de objetivos pessoais no montanhismo leva ao mérito pessoal. Tal mérito está relacionado à ideia de sentido: quem vai a uma montanha em busca de algo de cunho pessoal assim o faz porque isso lhe traz algum sentido que, na grande maioria das vezes, não pode ser traduzido em palavras. Desse modo, o mérito pessoal é inquestionável: ninguém pode ser criticado, por exemplo, por ter escalado o Everest usando oxigênio suplementar e usufruindo de todas as facilidades de uma expedição comercial, como guias, sherpas, cordas fixas, etc. Qualquer atividade de montanha, desde que siga as regras éticas básicas de convivência social e de respeito à natureza e às populações locais, não deveria ser questionada quanto ao mérito pessoal de seus praticantes.



O principal problema surge quando os méritos pessoais são confundidos com méritos esportivos. Isso ocorre de maneira intencional ou não. Em países com pouca tradição no montanhismo é algo bastante comum: basta subir o Everest, não importa de que maneira, para se tornar famoso e ser visto como um grande montanhista. Muitas vezes não seria essa a intenção de quem vai a montanhas como o Everest: vai porque quer cumprir objetivos pessoais, mas as notícias de sua escalada acabam sendo propagadas, pela mídia convencional ou até mesmo pela mídia especializada, como feitos de importância esportiva. Em certas ocasiões a intencionalidade está presente: aproveitando-se do desconhecimento do grande público, alguns montanhistas utilizam montanhas emblemáticas como o Everest ou o Aconcagua, ou o Projeto Sete Cumes, como um trampolim para a fama, buscando transformar seus méritos pessoais em mérito esportivo e, obviamente, levar alguma vantagem com isso, como na venda de livros, palestras ou, até mesmo, serviços de guia de montanha sem ter a qualificação correspondente.



Mas o que seria o mérito esportivo? O que define o montanhismo como um esporte? Para aqueles que buscam atingir um nível de excelência esportiva no montanhismo, é preciso observar dois aspectos importantes:

• A ética esportiva: define o que é considerado eticamente correto para que uma atividade seja vista como válida do ponto de vista esportivo.
• O nível técnico: define o que é considerado tecnicamente relevante para que uma atividade seja vista como importante do ponto de vista esportivo.

Por exemplo, na escalada esportiva a ética dessa modalidade proíbe pisar nas proteções ou utilizar qualquer tipo de artifício, como segurar as costuras, para progredir na via. Em relação ao nível técnico, se poucas décadas atrás escalar o sétimo grau (brasileiro) era visto como um nível de excelência, atualmente é preciso escalar graus bem mais elevados para que uma escalada específica seja noticiada como um grande feito. É possível obter um mérito esportivo na escalada esportiva escalando-se qualquer grau, respeitando-se a ética e as regras dessa modalidade. Porém, para fazer parte da elite que atingiu, atualmente, um determinado nível de excelência, é preciso observar onde estão os limites do esporte e quais os níveis técnicos que devem ser perseguidos.



Se entre os adeptos da escalada esportiva tais ideias já estão mais amplamente difundidas, na alta montanha, terreno por onde circulam as expedições comerciais, é mais comum que méritos pessoais sejam confundidos com méritos esportivos. O principal código de ética que rege as atividades de montanhismo, estabelecido pela UIAA - Union Internationale des Associations d’Alpinisme, pode nos ajudar a esclarecer o que seria o mérito esportivo nas atividades de alta montanha. O artigo 9, denominado Estilo e Excelência, começa definindo que “se você faz alguma ascensão, isso é menos importante do que a forma como você fez isso”. Em outras palavras, chegar ao cume de uma montanha é menos importante do que a forma como se chega ao cume.

Esse é um princípio ético geral: os meios que são considerados válidos em uma época podem se tornar antiéticos para as gerações futuras. O modelo que predominou na fase das primeiras ascensões às montanhas de 8 mil metros do Himalaia implicava na utilização maciça de carregadores, fixação de cordas, uso de oxigênio suplementar, etc. Atualmente, o Código de Ética da UIAA estabelece algumas normas técnicas, como evitar o uso de cordas fixas ou restringir o uso de oxigênio suplementar a urgências médicas. Isso não quer dizer que quem escalou o Everest usando oxigênio suplementar, necessariamente, foi antiético; a leitura que se faz é que foi antiético quem escalou o Everest usando oxigênio suplementar buscando ou atribuindo um mérito esportivo à sua ascensão. Ou seja, desrespeitando as regras que definem o montanhismo como um esporte. O mérito esportivo é alcançado quando as atividades na montanha são realizadas seguindo os critérios éticos e as normas técnicas que definem o que é aceitável para a prática esportiva do montanhismo.



E, para finalizar, é preciso ressaltar que a base para se atingir o mérito esportivo é a autossuficiência. Ou seja, uma cordada ou equipe de montanhistas deve ser, na medida do possível, totalmente independente, possuindo todos os conhecimentos técnicos e habilidades necessárias para a progressão na rota escolhida. Isso elimina, por exemplo, a possibilidade de utilização de terceiros, como os sherpas no Himalaia, para a fixação de cordas e preparação prévia da rota. Além disso, na equipe ou cordada, o conhecimento e as habilidades devem ser, de um modo geral, compartilhados por todos os membros, sem a centralização das responsabilidades em um membro específico. Isso exclui, por definição, as expedições comerciais guiadas do contexto da prática esportiva, pois o conhecimento e responsabilidades, nesse caso, se concentram nas mãos do guia que lidera o grupo.

Ser autossuficiente requer tempo e um constante aprendizado e também é a base do montanhismo de exploração, demonstrando, mais uma vez, a relação entre a ideia de “exploração” e o desenvolvimento do montanhismo como esporte. Buscar a autossuficiência é um caminho que todos os montanhistas deveriam percorrer, pois implica em uma senda de crescimento pessoal que vai muito além do exibicionismo e dos objetivos superficiais de se chegar ao cume a qualquer custo.