09/07/2022: Cume do P. 5780
Saí de madrugada determinado a executar o planejado no dia anterior e me dirigi às “moraines”, subindo suas encostas em busca de algum acesso ao glaciar. Após algum tempo, cheguei à conclusão de que tal busca poderia ser muito demorada e que o melhor seria seguir minha intuição: cruzar novamente o “paso” e descer a outra vertente, entrando no glaciar pelo sul. Após vencer os 120 m de desnível, comecei a descida, buscando uma alternativa que me levasse em direção ao glaciar. Desviei da trilha no primeiro trecho que me permitiu desescalar pelas pedras até atingir uma língua glaciária. Minha intuição estava correta: nesse ponto o glaciar tocava suavemente as “moraines”, uma entrada mais fácil do que eu poderia imaginar. Consultei o altímetro e havia baixado apenas 70 metros. Porém, foi preciso caminhar 3,5 km até o glaciar e seria preciso percorrer essa distância novamente na volta, agregando 7 km extras no acumulado do dia.
Já havia amanhecido, o tempo estava bom, céu aberto e sem ventos e, pela primeira vez, pude observar a rota até o P. 5780. Inicialmente, era preciso atravessar a parte baixa do glaciar, um campo de gelo de inclinação moderada com poucas gretas e relativamente seguro. Era um campo bastante extenso, até alcançar o ponto onde o glaciar começa a se inclinar, começando as dificuldades técnicas. Foi preciso fazer diversos desvios, para evitar alguns locais onde já se havia formado penitentes.
Por fim, o glaciar ganhou inclinação e profundidade, com mais neve acumulada e mais gretas, que formavam um labirinto que requeria bastante atenção. Eu teria que subir até a base da face sul do P. 5780, um trecho perigoso devido à queda de “séracs”, que se acumulavam ao longo da base, contornar a base até uma rampa que dava acesso ao colo para, então, alcançar a aresta sudoeste que me levaria até o cume.
Passei pela base da parede sul o mais rápido que pude, atento aos ruídos que pudessem indicar a queda de algum bloco de gelo. Chegando na rampa do colo, observei que algumas gretas estavam semicobertas, o que poderia significar a existência de alguma greta oculta. Foi preciso fazer uma auto-segurança para cruzar a greta principal, um procedimento que demanda um pouco de tempo, mas essencial para fazer a passagem com um nível de risco menor. Quando cheguei à aresta, os riscos trazidos pelas gretas eram bem menores, mas aumentou a inclinação e a dificuldade técnica.
Na parte final, a aresta se transforma em uma pequena parede de uns 50 metros, logo abaixo do cume, com uma inclinação de uns 55o e com algo que eu temia encontrar: acumulação de “nieve polvo”, uma neve fina e solta que tem a capacidade de se aderir em partes bem inclinadas e que, muitas vezes, impede a progressão, pela absoluta falta de sustentação do escalador nessas condições. Nesse trecho, em vez de usar os dois piolets técnicos, fiz uma manobra com um piolet e um bastão, mais eficiente nesse tipo de neve, apesar do ângulo acentuado. O piolet é usado para a tração, enquanto o bastão é introduzido perpendicularmente na “nieve polvo”, fazendo a função de alavanca. Foi preciso, ainda, desviar de uma última greta no final da parede, buscando o trecho mais inclinado desse setor. Finalmente, consegui passar para o platô acima da parede e, seguindo por um leve aclive, cheguei ao ponto culminante do P. 5780.
Era o começo da tarde e, como eu esperava, as nuvens vindas da região amazônica começaram a cobrir os cumes vizinhos. Era preciso descer rápido e atravessar o glaciar, antes que chegasse alguma nevasca. Por sorte não nevou e desci sem dificuldades, conseguindo chegar na entrada do glaciar com a última luz do dia. A subida para o “paso” e os 3 quilômetros e meio que me separavam da barraca pareceram uma eternidade, ter que encarar uma subida na volta de um cume nunca é uma tarefa das mais agradáveis. Só relaxei quando cheguei na barraca e entrei no saco de dormir, me abrigando do frio intenso de uma noite andina a mais de 5 mil metros. Uma frase de Fernando Pessoa descreve bem o cansaço que se segue a um dia como esse: “Dormia tudo como se o universo fosse um erro”.
Nunca é demais lembrar, para quem lê o relato, que atravessar um glaciar é uma atividade perigosa e que requer conhecimento e experiência, sobretudo quando se está na altitude que, por si só, já traz suas dificuldades e complicações. Fazer uma escalada técnica em um glaciar em solitário, além disso, é algo bem comprometido e não deve ser tentado por quem não acumulou conhecimento e experiência suficientes nesse tipo de ambiente: é preciso fazer uma leitura precisa e correta do glaciar para identificar seus riscos objetivos (que nunca serão eliminados, é bem verdade), e buscar evitá-los ou solucioná-los da forma correta. E ter o lado psicológico em ordem para aceitar os riscos e privações a que será submetido.