Autor: Marcelo Delvaux
Guia profissional de montanha, com título de “Guía Superior de Montaña” obtido na EPGAMT. Guia de montanha associado à AAGM e à AAGPM e credenciado no Parque Provincial Aconcagua. Possui mais de 150 cumes de alta montanha em seu currículo, com 12 cumes no Aconcagua, a montanha mais alta das Américas. Também possui formação acadêmica em filosofia (Especialista em Temas Filosóficos/UFMG) e história (Mestre em História/UFMG).
Vamos começar nossa reflexão com um episódio já clássico, e que muitos certamente conhecem: em 1923, durante uma visita a Nova York em busca de patrocínio para sua próxima expedição ao Everest, o montanhista inglês George Mallory, cansado de responder à mesma pergunta repetidas vezes, “por que você quer escalar o Everest?”, cunhou a expressão mais famosa, e lacônica, da história do montanhismo sobre o que leva alguém a subir uma montanha: “porque está lá”.
O “por que” de tal pergunta, no fundo, tem o sentido de “para que”, indagação típica do pragmatismo, ou melhor, do utilitarismo ocidental. Pragmático é quem vê na ação, e em seu êxito, o fundamento da vida, antepondo o “agir” ao “refletir”. Mas para o imediatismo da cultura ocidental, agir não é o bastante, a ação tem que ter alguma utilidade. Uma coisa é útil quando serve a outra coisa. A que outra coisa uma montanha poderia servir? Ou qual seria a utilidade de se escalar uma montanha? Ambientes de montanha, notoriamente, são lugares perigosos e pouco propícios à vida humana. Quem se dispõe a subir uma montanha abre mão dos confortos da vida moderna e da convivência com familiares e amigos, em troca de privações, sofrimentos físicos e psicológicos e exposição a riscos supostamente desnecessários. Para que?
O “para que” pressupõe um motivo para a ação. Daí a ideia de motivação e as teorias motivacionais de cunho utilitarista, que buscam compreender o que leva o homem a agir visando aplicar tal conhecimento na otimização dos processos produtivos das empresas e corporações. Pessoas motivadas, segundo tais concepções, seriam mais eficazes e eficientes. Em outras palavras, mais produtivas. O argumento de Mallory, além de uma forma sutil para livrar-se dos jornalistas com suas questões impertinentes, parece conter, em sua concisão, uma rica sugestão: porque a montanha está lá é algo suficiente, mas não necessariamente um motivo, para alguém querer ir até seu cume. Resta saber de que se trata esse “algo”.
Não foi na literatura de montanha onde encontrei as “respostas” mais satisfatórias para esse dilema, mas sim na obra de um filósofo dinamarquês chamado Soren Kierkegaard. Crítico da igreja católica enquanto instituição, sobretudo de seus ritos e de sua postura como mediadora entre os fiéis e Deus, Kierkegaard via a experiência religiosa como uma relação individual, singular e direta com o divino. E foi inspirado por essa perspectiva que Kierkegaard investigou, em um instigante livro chamado Temor e Tremor, escrito sob o pseudônimo de Johannes de Silentio, a natureza da fé de Abraão. Buscando entender o que teria levado Abraão a aceitar o sacrifício do próprio filho, conforme ordenado por Deus, Kierkegaard concebe a ideia de um “paradoxo da fé”: sua fé em Deus era tão grande que, paradoxalmente, estaria acima da moral humana, levando-o a cometer algo tão hediondo, como o sacrifício do filho no alto de uma montanha. O que seria essa fé, capaz de conduzir alguém a um ato inaceitável? Abraão não saberia dizer: o paradoxo da fé o condena ao silêncio. Não parece uma simples coincidência que o pseudônimo adotado por Kierkegaard tenha sido Johannes de Silentio, como veremos.
Dessa breve exposição já podemos perceber alguns pontos de contato entre a experiência de Abraão e a experiência do montanhista, além do fato de que o sacrifício de Isaac seria realizado no topo de uma montanha: a ideia mesma de sacrifício, que é um tema recorrente na literatura de montanha, e o silêncio que predomina nessa experiência. O “sacrifício” do montanhista aparece de formas diversas: nos esforços despendidos que, muitas vezes, produzem grandes desgastes físicos e psicológicos; nas altas somas gastas, “sacrificando” a possibilidade de aquisição de bens valorizados em um estilo de vida mais convencional; na ausência forçada do lar, durante os longos treinos ou em expedições que podem durar meses; ou até mesmo da própria vida. E o silêncio se reflete na impossibilidade de responder a uma simples questão: “por que ou para que subir uma montanha?”. Como a experiência de Abraão, e as ideias de Kierkegaard, poderiam nos ajudar?
Kierkegaard identifica três planos ou estágios para a vida humana, por ele denominados de estético, ético e religioso. O plano estético seria marcado pelo imediatismo e pela impossibilidade de se estabelecer relações duradouras por parte de quem se situa nesse modo de vida e se move, principalmente, buscando a satisfação de seus desejos. Suas ações seriam, predominantemente, ações egoístas, ou, extrapolando a conceituação de Kierkegaard, com o risco de sermos anacrônicos, ações egocêntricas ou que visam a satisfação do próprio ego, entendendo-se o ego como o objeto da consciência, aquilo que cada um pensa que é, ou que gostaria que os outros pensassem que fosse.
Os motivos e as razões para subir uma montanha daqueles que vivem no plano estético são variadas. Alguns, simplesmente, entram em uma expedição por mero “modismo”, buscando as novidades do mercado de aventura que outros amigos já consumiram e que eles não poderiam deixar de experimentar. A vontade de “ser o primeiro a” também é outra poderosa atração para muitos. De um modo geral, são motivações individualistas e intimamente relacionadas à sociedade de consumo, que poderiam ser sintetizadas em um forte “desejo de status”. Desejar status é almejar uma posição diferenciada. As sociedades ocidentais contemporâneas se caracterizam pela indistinção dos indivíduos e pela mediação do mercado. As relações de produção e consumo visam atender a linha média do mercado: um produto que extrapola o gosto mediano, se não for voltado para nichos específicos, terá pouca aceitação por parte de quem consome e pouca atratividade para a parte que produz. Ditadura do mercado? Não, ditadura da mediocridade, entendendo-se mediocridade não no sentido pejorativo que lhe é normalmente atribuído, mas pela noção de referência média para avaliação das coisas que estão no mundo.
Em um contexto de predomínio da mediocridade, o desejo de status é o desejo de estar acima da média, é a vontade de distinção em uma sociedade de massas. E subir uma montanha é o modo que muitos encontram para isso. O interessante é que, colocando tal ordem de motivações no plano estético de Kierkegaard, compreendemos melhor as implicações de natureza ética decorrentes dessa forma de agir. E não é por acaso que o plano ético, onde predominam o dever e as regras universais criadas para o estabelecimento de relações duradouras em sociedade, situa-se acima do plano estético.
No montanhismo o desejo de status, muitas vezes, leva a atitudes não éticas, ou não condizentes com os códigos de ética estabelecidos entre seus praticantes. Isso fica bem evidente nas tentativas de se forjar uma falsa imagem, ou simulacros, a partir de feitos pessoais, transformando-os em façanhas esportivas. Ascensões realizadas no Himalaia, por exemplo, que não seguem o Código de Ética da UIAA, ou a Declaração de Tirol, apesar de todo o mérito existente em se chegar ao cume de uma montanha como o Everest com o uso de oxigênio suplementar, não deveriam, ou não poderiam, ser tomadas como sendo de cunho esportivo. As implicações éticas ficam claras quando se percebe que, muitos que agem dessa maneira, o fazem com a intenção de obter vantagens pessoais, atribuindo um mérito esportivo a algo realizado no contexto de uma expedição comercial. Nas grandes expedições comerciais ao Himalaia faltam duas características básicas que se esperaria em uma ascensão esportiva: elegância e autossuficiência. Elegância de estilo significa fazer o máximo com o mínimo, onde a forma como um problema é resolvido importa mais do que o problema em si. Em outras palavras, a forma como se chega ao cume é mais importante do que o cume por si só. Autossuficiência implica em saber utilizar as técnicas e procedimentos adequados a cada situação e depender somente de si próprio e dos companheiros de cordada.
Ter o cume de uma grande montanha no Himalaia no currículo, independentemente da forma como o mesmo foi alcançado, é um dos trampolins preferidos daqueles que passam a vender serviços de guia de montanha sem ter a qualificação necessária para o exercício dessa profissão. Teriam sido elegantes e autossuficientes tais pessoas em suas ascensões, de modo que seus inquestionáveis feitos pessoais pudessem ser tomados como conquistas esportivas? As sociedades ocidentais contemporâneas também poderiam ser caracterizadas como sociedades do espetáculo, nas quais a produção de imagens, ou de simulacros, é o que mais importa para um bom posicionamento no mercado. A publicidade, essa grande fábrica de simulacros da sociedade de consumo, é um importante instrumento do montanhismo praticado no plano estético. E as grandes montanhas do Himalaia, infelizmente, acabaram se tornando o grande cenário midiático do espetáculo do montanhismo atual. A ideia de simulacro, que não pertence ao vocabulário de Kierkegaard, talvez nos ajude a entender porque o filósofo chamou de estético a esse plano da existência: simulacros, enquanto falsas imagens, são como criações estéticas maquiadas para a projeção do ego.
Segundo Kierkegaard, os limites do plano estético estão no desespero, que seria o resultado da busca incessante por novidades estéticas. O desespero humano de Kierkegaard também nos permite entender as condutas dos montanhistas que vivem no plano estético e sua ânsia insaciável de glória. Sabendo melhor do que ninguém que as imagens exibidas de “grande esportista”, ou de “grande guia de montanha”, não passam de simulacros, e que os simulacros duram pouco, sentem na pele a urgência da produção de novos simulacros que possibilitem a sustentação de sua imagem perante o público em um ciclo desesperante de busca de exposição na mídia.
Se no plano estético o indivíduo se encontra isolado na satisfação de seus desejos imediatos, no plano ético é o dever para com o outro o que rege a conduta humana. Aqui são estabelecidas relações duradouras pautadas pelas noções de “certo” e “errado”, por sua vez definidas por regras universais socialmente estabelecidas. No plano estético falamos em motivos e desejos; o plano ético é o plano da Razão por excelência. Aqui as ações humanas são justificadas por suas “razões”, mais do que por seus “motivos”, e plenamente compreendidas quando enquadradas nas regras universais, ou éticas, compartilhadas por todos. Para haver entendimento é preciso um vocabulário comum, estabelecido por tais regras. A linguagem, portanto, é um componente essencial de quem transita por esse plano.
Talvez as melhores respostas à pergunta “por que escalar uma montanha?”, ou pelo menos aquelas mais bem compreendidas por quem não é montanhista, se situem no plano ético e, de um modo geral, relacionam-se com a ideia de se executar um projeto. A linguagem dos “projetos”, em tempos atuais, extrapolou os limites do mundo dos negócios, invadindo as mais diversas esferas da vida humana. Tudo é visto como um projeto, com metas e objetivos a serem cumpridos. Um projeto é algo racionalizado, que requer planejamento e um relacionamento entre os indivíduos envolvidos, mediado pela linguagem. Por isso é que poderíamos situá-lo no plano ético. Se estivermos executando um projeto com objetivos bem definidos, visando a obtenção de algum resultado passível de ser descrito pela linguagem, teremos maiores possibilidades de sermos compreendidos.
No montanhismo não é diferente e muitos expressam seu desejo de subir uma montanha através da linguagem de projeto: cumprir metas e objetivos, executar um desafio, trabalhar em grupo, superar limites, todas essas “razões” são racionalmente construídas, e passíveis de entendimento nas sociedades ocidentais contemporâneas. O melhor exemplo é a ”popularização” do Projeto dos Sete Cumes, que tem como meta a escalada da montanha mais alta de cada um dos continentes e que é descrito, justamente, como um projeto. Realizar um planejamento, executá-lo e chegar aos resultados almejados é algo que muitos compreenderão, tornando o montanhismo mais “assimilável” pelos não montanhistas, mesmo que esses não aceitem os riscos envolvidos e questionem a validade de tais resultados.
Cabe, porém, uma ressalva: executar um projeto no plano ético não significa, necessariamente, ser ético. Quando um projeto busca todos os meios para ser chegar aos resultados planejados, no melhor estilo “os fins justificam os meios”, corre-se o risco de que a ética seja deixada em segundo plano. No montanhismo, isso se reflete nos projetos cujo objetivo principal é formulado como “alcançar o cume”. O Código de Ética da UIAA é muitas vezes ignorado, não por acaso, nos projetos onde essa é a meta estabelecida e perseguida a todo custo, como nas expedições comerciais no Himalaia. Os projetos de escalada e montanhismo que melhor se enquadram no plano ético são aqueles que privilegiam a experiência e os meios pelos quais se escala uma montanha, definindo seu critério de sucesso não como “chegar ao cume”, mas como a correta execução das atividades previstas no planejamento, ficando o cume como consequência da execução dessas atividades.
O último plano existencial concebido por Kierkegaard é o plano religioso que, numa perspectiva laica, poderíamos chamar de plano transcendente ou transcendental, na medida em que tal plano nos oferece um sentido para nossas ações que transcende as motivações estéticas e as razões éticas. É nesse plano que Kierkegaard coloca Abraão, quando esse aceita o sacrifício de seu filho imposto por Deus: nesse ponto, a fé encontra-se em contradição com a moral, não sendo possível compreender a ação de Abraão pela ética. Kierkegaard mostra a diferença entre Abraão e o herói trágico, dando o exemplo do rei que aceita sacrificar seu filho quando vê a cidade que governa sitiada pelos inimigos, buscando a intervenção favorável dos deuses. Tal rei encontra-se, em seu ato, no plano ético, pois sua conduta seria plenamente compreendida por seus súditos: mais do que compreendida, era o que se esperaria de um rei naquela sociedade. Já o sacrifício de Isaac não tem nenhum propósito para além da fé de Abraão. É um absurdo aos olhos de seus contemporâneos. E são, justamente, a contradição e o absurdo que caracterizam a passagem do plano ético ao plano religioso. Não mais estando no domínio do inteligível, e da linguagem, os atos realizados no plano religioso não podem ser formulados por palavras, devido à singularidade de seu sentido, que só é compreendido por quem os executa ou vivencia. Sentido, não mais motivos ou razões, é o que determina as ações humanas nesse plano existencial.
Muitos montanhistas justificam suas ascensões e escaladas racionalizando o ato como uma forma de autoconhecimento, como uma procura de sentido para suas vidas ou, para os mais religiosos, como uma forma de estar perto de Deus ou de estabelecer contato com algo superior ou absoluto. O montanhismo, realmente, é repleto de experiências singulares, não traduzíveis em palavras, e poderíamos afirmar que tais experiências se dão não somente com os montanhistas que estão em busca de algum tipo de transcendência, mas também com aqueles que transitam pelos planos estético ou ético. É o que dá ao montanhismo seu caráter ascético, não no sentido estritamente espiritual, mas como exercício de amadurecimento e crescimento pessoal, fazendo com que muitos que ansiavam por glória ou que encaravam as montanhas como um mero projeto, encontrem algum sentido além da linguagem, incompreensível para quem não tenha passado por tal experiência. Talvez por isso muitos respondam a questão de “por que escalar uma montanha?” dizendo que buscam inspiração ou porque lhes abre a cabeça para novas ideias. As experiências singulares, realmente, estão na base do processo criativo e, nesse sentido, subir uma montanha talvez se assemelhe à produção artística ou poética. Seriam as montanhas, com o perdão do trocadilho, uma espécie de poesia concreta?
Estar no plano religioso, ou transcendental, significa estar no silêncio. É quando não necessitamos mais de motivos, ou de razões, para subir uma montanha, nos bastando o sentido que isso confere ao ato, ou às nossas vidas. E, de certo modo, é vivenciar a contradição, o paradoxo, o absurdo, ou seja, aquilo que não é compreendido por outras pessoas devido à singularidade da experiência. “Porque está lá” seria a melhor resposta.